Agonia de uma cidade. Reportagem de Edmar Morel.

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O jornalista Edmar Morel esteve em Piraí, RJ, em março de 1946. Ele abre a matéria dizendo:

A cidade é Piraí e dista 85 quilômetros da Avenida Rio Branco. E os descendentes de uma verdadeira aristocracia rural, diante do abandono em que vivem e da decadência do lugar, cruzam os braços, levantam os olhos para o céu e murmuram:

- É uma questão de dias! ...
 
   
No tempo em que Piraí tinha um trem diário e era orgulho do Estado do Rio de Janeiro. Neste porto, há muitos anos, desembarcaram os príncipes brasileiros.
Aqui foi a estação da Estrada de Ferro de Piraí. A parte moderna de Piraí, a cidade esquecida.
Uma das obras de ontem de Piraí. Um chafariz da era colonial. A agência dos Correios e Telégrafos no seu estado natural.
Fotografias e texto de "A Cigarra Magazine". Março, 1946.
Por aqui passaram os trilhos de uma estrada de ferro imperial...  
   

Continua o jornalista:

"Piraí é apenas isto: uma cidade fundada em 1837, com 240 casas e nobres passeando pelas suas ruas, em número de seis...
Por muito tempo foi conhecida por "terra dos Breves" e os seus primeiros colonizadores se estabeleceram com imensas plantações de café e constituíram troncos de ilustres famílias, formando uma verdadeira aristocracia rural [...]

Lembro-me de um morador de Piraí, ao meu lado, passeando pelas ruas cheias de sobrados e casas em ruínas:

- O nosso teatro era tão importante que as companhias francesas nele estreavam antes de ir para a Corte ... Muitas vezes D. Pedro I e a Marquesa de Santos estiveram aqui veraneando...

- Hoje não temos nada e vivemos sob a ameaça de ver a cidade inundada numa sorte igual a de São João Marcos. Aqui não temos nada. Até a estrada de ferro fundada por iniciativa particular foi arrancada.

Relata o jornalista que:

Na sede não moram mais do que 2.200 pessoas e de sua população de 15.000 habitantes, só no ano de 1944, 4.000 foram atacadas por impaludismo, impaludismo dos bons, cujo agente provocador, o anofelinas, parece alimentar-se unicamente de atebrina e quinino...

Deixo para trás um montão de nobres que vivem em Piraí. Abandono o Capitão Maneco Torres, bisneto do Visconde de Itaboraí, grande do Império e um dos fundadores do Banco do Brasil. Deixo uma matrona gorda, casada com um bisneto do Barão do Piraí, por sua vez primo do Barão de Vargem Alegre... São restos de uma aristocracia agonizante, numa cidade que desaparece.

Piraí de 1946

Um mundo de contrastes, de abandono e de resignação. As Irmandades do S.S. Sacramento e de São João Batista do Arrozal foram ricas e estão reduzidas quase à miséria... O padre do lugar chama-se Pedro de Andréa. É italiano e como quase todo italiano da era de Benito Mussolini, é fascista.

- Uma vez - diz-me um antigo de Piraí - o vigário, no auge de seu delírio político, fez uma procissão com todos os santos vestidos de verde. E no braço da pobre Virgem Santíssima colocou um sigma!

Esta estranha procissão, como objetivo de propaganda fascista alcançou seu objetivo. Várias senhoras desprevenidas e alguns rapazes ingênuos acreditaram que o fascismo era mesmo de Deus, da Pátria e da Família... Mas não era.

Outrora, há muito anos, quando o rio era navegável, quando os engenheiros não tinham ainda desviado o seu curso em Itaverá, quando o município produzia café e centenas de milhares de cabeças de gado pastavam nas várzeas, Piraí era um lugar próspero e feliz. Tinha uma estrada de ferro e os barcos cortavam as águas do rio, com os porões abarrotados de mercadorias. O povo só bebia champanha e vinho em taças de cristal. E as moças trajavam-se como as moças da Corte.

E de madrugada, quando deixei a cidade que agonizava, vi uma pequena multidão de mulheres entrando na igreja. Iam pedir a Deus para que os engenheiros poupassem a sua cidade, cidade que era o orgulho do Império.
Remember São João Marcos.

 
Edmar Morel (1912—1989)

Jornalista e escritor, autor de grandes reportagens e vários livros, um dos quais sobre a rebelião do marinheiro João Cândido, que Morel cognominou Almirante Negro. A partir da publicação do livro, a revolta passou a ser identificada como Revolta da Chibata, publicado em 1959 [...] trabalhou nos jornais O Ceará e A Rua, como corretor de anúncios, auxiliar de revisor e auxiliar de repórter. Em 1932, Morel foi para o Rio de Janeiro. Em 1937, Edmar Morel ingressou no jornal O Globo. Posteriormente trabalhou também em A Tarde, no Diário da Noite e na revista O Cruzeiro, de 1938 a 1947.

Referências:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Edmar_Morel

CARVALHO, Luís Maklouf. Cobras criadas: David Nasser e 'O Cruzeiro'. SENAC, 2001. ISBN 8573592125

Morel, Edmar. Histórias de um repórter. Rio de Janeiro: Record, 1999. ISBN 85-01-05055-5. Foto da capa do livro: Fundação Biblioteca Nacional. Acervo Edmar Morel.
 
Obras:


* Gago Coutinho e Sua Vida Aventurosa. Coelho Branco, 1941.
* Moscou Ida e Volta. Pongetti, 1952.
* Reportagens que abalaram o Brasil ( com David Nasser, Carlos Lacerda, Joel Silveira, Justino Martins, Otto Lara Resende, Samuel Wainer e outros). Bloch.
* O Golpe Começou Em Washington . Civilização Brasileira, 1965.
* Padre Cícero: o santo de Juazeiro. O Cruzeiro.
* A Trincheira da liberdade - História da ABI. Record.
* A Revolta da Chibata - levante da Esquadra. Graal, 1986.
* A Marcha da Liberdade. Prefácio de Jorge Amado. Vozes, 1987
* Amazônia saqueada . Global. 3ª Edição. ISBN-13: 9788526002333
* Histórias de um repórter. Record, 1999. ISBN 9788501050557
 
   

Colaboração de Nicea Waldmann que enviou o artigo do acervo de Cecília Torres.

 
     
 

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