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Ernesto
Joaquim morava na fazenda Palmital em Piraí
- RJ. Sêo Ernesto para todos nós. Prêto
velho
e centenário que trabalhou para meu
avô Reynato. Fez seu casebre logo abaixo do
eucalipto da entrada da fazenda próximo a
mata. Dizia que lá tinha água boa e terra
para plantar. Quando meu avô morreu ficou
sob nossa responsabilidade.
Bebia cachaça de cair e costumava chegar em
Piraí bêbado e bulir com as pessoas. Alguns
o respeitavam e outros não.
Acabava o velho indo dormir na antiga
garagem de ônibus de meus avós. Chegava
esmurrando a porta e Joel, cria da casa, não
tinha a menor paciência. Abria para ele
entrar, e ele subia na carroceria da
camionete e lá ficava.
De manhã quando Joel ia para o Palmital
buscar o leite, levava-o à reboque. Quando o
porre era grande ele ia e voltava sem
perceber a viagem, quando bebia menos,
saltava no Palmital.
Fazia a roça plantando aipim, milho, inhame
e hortaliças. Isso com 100 anos de idade. Às
vezes parava a lida e acendia o pito feito
de coquinho, cortava pedaços de fumo de rolo
e acendia.
Conversava bastante. Dizia que tinha
trabalhado na construção da Rio-Petrópolis
quando menino e que tinha visto o Imperador
Pedro II várias vezes subindo a serra. Dizia
que todos tiravam o chapéu e baixavam os
olhos em sinal de respeito. Ríamos muito de
suas histórias.
Mesmo sendo analfabeto, sabia tudo de
agricultura, dos animais e do tempo. Sempre
perguntávamos:
“ Sêo Ernesto hoje vai chover?”
Ele olhava para o céu e dizia:
“Hoje não... vai chover por roda” ou seja,
choveria em volta, em Piraí ou Barra do
Piraí, mas não no Palmital. Acertava sempre
o danado.
Uma vez plantou uma roça de aipim. Uns
quinhentos pés. Estávamos todos por lá e ele
foi demonstrar que já podia colher. Escolheu
um pé e puxou com força. Decepção!
Ah! disse êle. O danado do tatu tinha comido
por baixo o aipim todo.
Rimos muito do acontecido.
Acreditava nos maiores disparates:
lobisomens, mulas-sem-cabeça, mães-d'água e
outros entes da Natureza.
Contava êle no seu linguajar característico:
"Tava na roça, di tardinha, quandu ôsso o
rinchá da mula. Mi iscondi pur ditrás dos
matos e a coisa vinha descendo o caminho que
vem lá do Bananeirá. Já tava meio escuro mas
ela me viu e sortando fogo pelas ventas me
oiô cum aqueles zóios grandes..."
Mas como ela te olhou Sêo Ernesto? Ela não
tem cabeça. A molecada toda riu. O velho
ficava sem graça com aquelas perguntas.
Tinha um mêdo terrível de um morador da
estrada. Tinha certeza que o Sr. Chico
virava lobisomem. Quando passávamos na
camionete e Sêo Chico estava na porta, era
um terror. Gritávamos: "Olha o lobisomem Sêo
Ernesto". Êle ficava apavorado. Coitado de
Sêo Chico!
Havia sempre a dúvida quanto à idade do
velho. Tinha 100, 130, 90 ou 80 anos. A
carapinha e barbas brancas não enganavam.
Com a chegada do FunRural fomos providenciar
sua documentação. Perguntei:
“Onde o Sr. nasceu?”
- Em Porto Novo do Cunha, na fazenda tal...
Pegamos o carro e fomos até Porto Novo. É um
lugarejo próximo de Paraibuna, com poucas
casas e pouca atividade. Procuramos pelo
cartório local, mas se encontrava fechado.
Lugar pequeno com um carro de fora
circulando gera inquietação. Uma pessoa veio
até nosso encontro perguntar o que queríamos
com a clássica pergunta mineira do interior:
- Cês são de ondi?
Minha mãe disse que estava procurando o
cartório para apurar informações de registro
de nascimento de um empregado. Fomos levados
até o local e nos acompanhou uma professora
moradora de Porto Novo. Bom! pela idade
aproximada de Sêo Ernesto e estávamos em
1975, começamos a busca pelo ano de 1875.
Horas depois encontramos o seguinte
registro: Ernesto Joaquim, nascido na
Fazenda Estrela em 25 de maio de 1867, filho
de...
Estava resolvido o problema! A data e local
de nascimento foram confirmados pelo velho.
No fim da vida e bebendo muito, Sêo Ernesto
tinha delírios e perdia totalmente a noção
das coisas. Sumia com frequência por que não
sabia retornar para casa. Faleceu aos 108
anos.
Quase trinta anos depois, quando passo pela
estrada do Palmital e olho para o vazio,
logo abaixo do grande eucalipto, lembro do
velho Ernesto, de suas histórias e porres,
do pito de côco com fumo-de-rolo, das
crendices, da vida em criança.
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