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Festa no quilombo

18 de maio de 2013

Manhã chuvosa no Rio de Janeiro. Um pouco frio para os padrões cariocas, mas a visita ao quilombo de São José da Serra prometia bons momentos na Serra da Beleza. Às 7:30 h já estava no Belvedere Viúva Graça após o pedágio. Aguardava a chegada do Paulinho Rodrigues, fotógrafo do Festival do Vale do Café. Não se demorou. Depois do café, seguimos para Piraí, Barra do Piraí e pegamos o caminho para Conservatória, passando por Ipiabas.

O asfalto está na porta da entrada do jongo. Chegamos ao local e havia pouca gente. O tempo frio e uma leve garoa, deixou a sensação que não teríamos grande público. Ledo engano! O camping foi sendo tomado pelas barracas, o pátio, pelos visitantes. Ainda pegamos o final da missa afro, celebrada ao sons dos tambores, saudações e muita alegria.

 

Com: Mestre Pedrão de Pinheiral, Sr. Manoel Seabra de São José da Serra, Edgard do Jongo de Arrozal, Grupo de jongueiras de Pinheiral.
 

Por volta do meio-dia começaram a vender o ticket para a tradicional feijoada. Uma fila gigantesca se formou e após meia hora, desistimos do almoço. Vendemos o ticket na outra fila, também grande, que estava ao lado para a compra do bilhete. Partimos para outra solução de matar a fome. Algumas barracas serviam pastéis, carne na chapa, bebidas, doces, churrasquinho. Foi nesse cardápio variado que nos servimos.

Uma animada roda de samba compunha o pano de fundo para o almoço. Fiquei impressionado com a quantidade de pessoas que chegavam ao cair da tarde. E a fila da feijoada avançava lentamente. Mas o clima do quilombo é de extrema descontração e felicidade. Todos, comunitariamente, estão ali para curtir e desfrutar da música africana, rever os amigos, dançar, namorar ou apenas experimentar como avant-première sua inicialização na cultura africana.

Sr. Manoel Seabra com integrantes do jongo de Pinheiral.
 

Toninho "Canecão" corre de um lado para o outro. Para alguns instantes, atende um e outro e continua correndo para inúmeros afazeres. O saco com linguiça, o gelo, o som que deu defeito, as filmagens de grupos da UERJ, de TVs locais, de estrangeiros, etc... Sozinho, corre para a festa funcionar. Um jornalista de Washington, DC, estava por lá com sua câmera, filmando os mínimos detalhes.

Encontramos as famílias jongueiras de Pinheiral e Arrozal. Uma pena que a Fatinha do jongo de Pinheiral não estava presente. Viajou para a Bolívia num compromisso oficial. Suas irmãs a representavam com maestria. Seu Edgard, chefe do jongo de Arrozal, sempre sério, orientava os mais novos antes da apresentação.

 - Precisamos de um "patrocínio" para a compra de um novo tambor candogueiro, comentava em voz baixa. A nova roupa já está com o pano adquirido. Segundo ele, faltam costureiras e algum capilé para pagar a confecção.

 Grupos de capoeiras, maculelê infantil, e um surpreendente grupo de adolescentes de Curitiba, acompanhadas de um atabaque forte e bem ritmado cantavam alegremente vários pontos. Me aproximei e perguntei sobre o grupo. Renata me disse que todas faziam parte de um Centro e que estavam ali para conhecer a festa do quilombo. Um contraponto à negritude local. Mãos brancas e cabelos lisos e claros integrados naquela roda de música que veio da mãe África. Brasil, sem dúvida!

A precariedade da infraestrutura necessita de reparos. Banheiros, uma ambulância. A polícia chegou tarde. Duas mil pessoas ou mais, segundo Canecão. Um garoto passou mal e a correria foi grande: "Algum médico! exclamava ele no meio da multidão. Um fisioterapeuta se apresentou. "Corre para a capela e vê se pode ajudar". Não soube mais notícias.

 
Alceu e Paulo Rodrigues prestigiando a festa de São José da Serra.   Jovens de Curitiba, PR, na roda, cantando pontos, num ritmo marcado pela alegria.

Encontrei com a figura mais ilustre e simpática do lugar - Sr. Manoel Seabra. Um cavalheiro como sempre. Atencioso e se dispondo a conversar e tirar mil fotos com todos que vinham abraçá-lo. Está com 92 anos.

Não bebo mais vinho nem cerveja. O médico proibiu, disse ele.

E o jongo, ainda dança?  perguntei.

 Sorriu e disse que não poderia deixar de dançar. O jongo, suspirou ... é minha vida!

Outra ausência sentida por todos, foi de Dona Maria Sarapião. Adoentada, estava em Volta Redonda, na casa de uma filha.

Por conta da multidão, os atrasos na programação foram acontecendo. Escureceu e começaram as apresentações do grupos jongueiros. Subi num banco de madeira para fotografar e lá estavam Alceu, Maria e um casal amigo, participando de um batuque. Estavam hospedados em Conservatória e chegaram para ver a fogueira. Difícil mesmo foi "fazer a roda" para que os jongueiros pudessem se movimentar. Pedidos insistentes - "abre a roda!", "abre a roda!", e todos se juntavam cada vez mais.

A beleza do jongo de Pinheiral, comandado por mulheres; a força de Seu Edgard, batendo o "macuco" no tambor, marcando ritmo e puxando os pontos. São vários e ricos os pontos de jongo: de louvação, saudação, visaria, demanda, encante, gurumenta.

 

Eu não bebo mais cachaça

Nem o cheiro eu quero ver

Mas depois que tá no copo

Num posso deixar perder

Ô li lê lê Ô lê lê

Ô li lê lê lêêêê.

 

Reencontrei Mestre Pedrão, do jongo de Pinheiral, no balcão de uma barraca de bebidas. Tomava uma birita. Ele recordou a conversa que tivemos e gravamos sobre os Breves:

 "Os Breves tinham mais de seis mil escravos, mas o Breves acabou... O jongo está aí, tá me entendendo!.

 Dessa vez ele acrescentou: "Não disse que acabou. Tanto que você está aí. O quê acabou foi o mando, as correntes...!"

 Segundo ele, nada melhor que uma cachaça para aliviar o espírito. Com aquele friozinho, faz sentido. Entrou na roda e dançou com seu povo com a alegria de um jovem.

Acampamento no quilombo de São José da Serra

Circulando pelo pátio, com lentes de longo alcance, captávamos a beleza do encontro: roupagens coloridas, cabelos nos mais variados estilos e danças singulares. Uma pequena África havia se instalado naquele pedaço de montanhas da Serra da Beleza.

Uma constatação nossa: a grande participação de crianças e jovens que dançavam e tocavam instrumentos. Faziam pose e pediram fotos. Um deles, sozinho, fazia a festa de uma roda, tocando cavaquinho. Outra, de no máximo 8 anos, foi a sensação dos fotógrafos, com seus cabelos trançados e olhar distante. Uma escola de Barra do Piraí levou os alunos para conhecer o quilombo. Assim, o jongo, a capoeira, o maculelê, e outras manifestações culturais vão seguir adiante.

Com o atraso das apresentações, a procissão, a benção e roda do jongo dos anfitriões só começou às 23 horas. Após a reunião na capela, Toninho Canecão, Manoel Seabra, Mãe Tetê e cerca de 20 integrantes, saíram rumo à fogueira. Cantaram o tradicional e belo ponto:

 

Ah! Eu fui na mata

panhá a lenha

eu passei na cachoeira

molhei a mão

Sinhô da pedreira

Benze essa fogueira

A lenha da fogueira

prá durar a noite inteira

 A multidão correu para acompanhar. Ficou impossível de se ver. Os mais velhos dançando em volta da fogueira, espremidos pela curiosidade. Resolvemos encerrar o passeio. Segundo Toninho Canecão, após a fogueira, um forró animaria a madrugada até o dia raiar.

 

Retornamos para Piraí, no sítio Paraíso, base de nossa expedição cultural, e na manhã fria fomos tomar café na padaria da praça Sant'Ana. Qual minha surpresa ao olhar para a igreja matriz de Sant'Ana! Um arbusto próximo às torres sineiras. Fotografei! Talvez uma semente levada pelo vento ou por algum pássaro fez nascer o vegetal. É certo, que se ficar, provocará mais rachaduras no prédio histórico. Espero sinceramente não comemorar o aniversário do insólito arbusto no alto da igreja. Uma quermesse ou um capilé de algum órgão público resolveria o problema. Uma pintura e restauração da fachada da igreja centenária, construída pelos mais antigos de Piraí, seria de muito bom alvitre.

Igreja matriz de Sant'Ana em Piraí, RJ.

Como Curador do Guia Cultural do Vale do Café, lançado recentemente, visitei 18 municípios fluminenses. Diversas igrejas históricas padecem do mesmo descaso. Infiltrações, rachaduras e tetos caindo, contrastando com altares magníficos de ouro e arabescos. Também registrei exemplos maravilhosos de restauração, mas infelizmente são poucos.

Não se trata de uma questão de fé. Cada um reza com o Credo de sua preferência. Basta ver e seguir o exemplo de São José da Serra que realiza uma bela festa, com inúmeros percalços é verdade, mas cheio de riqueza e simplicidade. Uma mistura de sons, danças e culturas diferentes confraternizando no chão de terra, sob o olhar dos deuses africanos.

 
     
 
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