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O segundo caso que elegemos para
relatar diz respeito a tutela de uma menina, filha de uma
brasileira com um diplomata italiano. Como
dissemos, o caso complexo de disputa pela tutela de uma
criança, entre seu avô, um rico proprietário no Rio de
Janeiro e o pai, que, pelo próprio cargo que ocupava,
implicava alguma rede de sociabilidade política influente da
diplomacia européia na corte do Rio de Janeiro. Os dados
sobre o contendor brasileiro, Joaquim José de Souza Breves
(1804-1889), nesta disputa pela tutela indicam que ele foi
longevo, tendo morrido em 1889, um ano após a abolição da
escravidão no Brasil. Era conhecido como o “rei do café”,
tendo sido o maior proprietário de escravos e terras do
século XIX. Acumulara fortuna somando a compra de fazendas à
herança dos pais e ao casamento com sua sobrinha Maria
Isabel de Moraes Breves, filha do barão do Piraí. Defensor
de posições políticas escravistas continuou comprando
escravos após a proibição do tráfico, em 1850. Suas pelejas
nos tribunais foram muitas e a disputa pela tutela da neta
foi apenas mais uma. Anteriormente ao episódio que estamos
narrando, Breves fora julgado e inocentado, em 1852, pelo
desembarque ilegal de escravos no famoso processo chamado
“caso Bracuí”. Cercava-se de bons advogados, tanto que
conseguiu inocentar-se de acusações de atos que praticara
que eram conhecidos publicamente. Foi presidente da Câmara
de São João do Príncipe, eleito e reeleito juiz de paz e
vereador, deputado e duas legislaturas na Câmara Provincial.
A demanda pela tutela de neta de sete anos foi encaminhada
pelo advogado do avô da criança. Joaquim José de Souza
Breves, por sua vez, lança mão de vários dispositivos na
disputa pela tutela da neta; entre eles os pareceres de dois
advogados italianos, nacionalidade de origem do pai da
menina, especialmente encomendados para analisar o caso. O
parecer de jurista italiano, Luiz Sauminiatelli é o mais
longo e substantivamente argumentado; foi traduzido por um
tradutor público, Carlos João Hunchardt. O parecer de J.
Andrencci seguiu os mesmo argumentos de Luiz Sauminiatelli.
Foram emitidos em 1866. A apresentação dos fatos no parecer
emitido pelo advogado italiano contém toda a delicada
situação de desvantagem (jurídica, por suposto) de Breves,
face ao princípio da extraterritorialidade das
representações diplomáticas, princípio este defendido a
aceito pela maioria dos países que participaram do Congresso
de Viena. Neste princípio de extraterritorialidade, a
nacionalidade dos filhos de diplomatas era definida pela
nacionalidade dos pais, prioritariamente. A escolha de outra
nacionalidade (do território onde o filho(a) do diplomata
nasceu seria de sua livre escolha, após a maioridade civil.
Portanto, a neta de Breves, filha de um diplomata italiano,
possuía, primeiramente, na nacionalidade italiana. Esta a
razão da consulta a advogados italianos, uma vez que a
disputa pela tutela de sua neta, deveria ser litigada na
Itália. Na abertura do parecer, ficamos sabendo que o
diplomata italiano casara-se cm uma rica senhora, em país
estrangeiro e residira permanentemente na casa do pai e da
mãe da esposa. Alguns anos depois do casamento, a esposa
enlouqueceu, tendo morrido no estado de loucura. Atente-se
para o fato já bastante pontuado na historiografia sobre as
questões referidas às relações de gênero, família e ou mesmo
loucura acerca da imputação de loucura às
mulheres como expediente dos maridos para a separação nos
casos de casamentos mal sucedidos; uma vez que o casamento,
assentado como sacramento no direito civil eclesiástico, era
indissolúvel.
Portanto, do casamento infeliz
da filha de Breves, ficou uma neta, que sempre havia morado
com os avós maternos e no parecer jurídico em tela,
sustentou as qualidades e possibilidades de um futuro
tranqüilo e opulento para a criança. Ademais, seus avós
foram qualificados como pessoas da mais alta
respeitabilidade. Informou ainda que o diplomata italiano
havia dissipado o dato da mulher; depois da morte dela,
exigiu todas as jóias da falecida, que vendeu e, da mesma
forma, dissipou tudo que apurou. E mais, apesar de ter
ganhado muito dinheiro por ocasião deste casamento, o
diplomata estava atolado em dívidas. Manifestando seu desejo
de retirar-se para a Europa, reclamou sua filha. Obviamente,
os avós queriam a tutela da neta, desejando dar-lhe uma
brilhante educação, e, alegaram ainda, que temia pela saúde
da menina, que sofria de contínuos ataques dos nervos.
Temia, portanto, pela existência de sua neta.
Os pareceres dos advogados
italianos apresentaram todos os itens desfavoráveis ao
comendador Breves, sendo o mais importante o efeito do
privilégio de extraterritorialidade o diplomata italiano
podia ser dispensado de recorrer aos tribunais do país
estrangeiro onde residia para reclamar judicialmente a
tutela de sua filha. Informaram, ainda, que, pelo direito
italiano, e no caso de Breves intentasse litigar nos
tribunais italianos pela tutela de sua neta, e mesmo
provando a dissipação dos bens herdados e do dote, advertiam
ao avô de que, em matéria de direito de família, os
tribunais não tinham tradição de interferir em questões de
família. Aconselharam, portanto, a Joaquim José de Souza
Breves a entrar em acordo com o genro. Ao que tudo indica,
pela observação da correspondência diplomática, que o acordo
acabou sendo feito, e o diplomata italiano acabou
conseguindo outros ganhos de seu sogro. Sem dúvida, seu
casamento foi um grande negócio para si.
[...] Deduzimos que o
pleito de tutela da neta feita pelo comendador Breves, filha
de diplomata italiano, foi resolvido através de um acordo
entre as partes. [...] concluímos que, ao contrário de
pensarmos na precariedade ou ausência de justiça para os
estrangeiros residentes no Brasil em meados do século XIX,
devemos considerar que estes dispunham de dispositivos de
pressão política, através de suas representações
diplomáticas que pressionavam pelos seus direitos.
NEDER, Gizlene. Herança,
tutela e questões diplomáticas no Segundo Reinado
(1840-1889). 2008 - História, Poder e Sociedade.SBPH -
Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica.
<http://sbph.org/2008/historia-poder-e-sociedade/gizlene-neder> |