Tio Firmino comia cobra.
Caçava-as, cortava-lhes
um palmo do rabo, outro da cabeça, ensopava o resto.
Tio Estaniláu tinha-se na
conta de príncipe.
Os outros acreditavam.
Usava o merimbáu – uma
varinha de bambú sêco ligada ao umbígo.
Tia Joana quase morreu no
dia em que viu um avião.
Atirou-se no chão,
babando, aos berros.
Tio Polidóro procurou
acalmá-la:
-
Assosséga, muié! É canôa do á!
Maria Goma deu escandâlo
na noite em que apareceu no baile de sanfona, dançando valsa com um
leque de penas, falando como a antiga sinhá:
-
Quel chauleur!
Tio Estevão teve lepra.
Curou-se acorrentado,
muitos anos, ao tacho de cozinhar inhame.
Tio Nicoláu tinha as
pernas inchadas.
Andava de vagar, até na
chuva.
Remédio para caimbra era
o barbante vermelho que amarrava na canela.
Tio Quirino furtava a
maquía.
Quando o feitor, depois
de medir o milho, começava a por o fubá na quarta, êle dava um pulo,
dançava o cateretê.
O sapateado durava o
tempo em que a farinha, enchendo a vazilha, ia ficando socada.
O dono do moinho perdia a
vantagem da troca.
Tio Anastácio contava o
duélo:
- Numa noite de jongo,
voltando para casa, o mato estalou no morro. O bicho pulou para a
estrada, de olho aceso.
Bem que quis correr, mas
não pôde. Gritou por Nossa Senhora.
Esperou, a perna agarrada
no chão, a foice no alto.
Botes, foiçadas que nem
chovisco.
Dia claro, acordou no
fundo do buracão, o corpo pisado.
Ficou espantado com o
tamanho do urutú, todo talhado e morto.
Correu para a fazenda,
atrás do remédio.
Nhô Chiquinho falou:
-
Negro de sorte: a cachaça matou o veneno!
Tio Eunápio não pegava na
enxada.
Mas era dono de roça
grande, bem tratada.
Seu rancho tinha
santinhos de páu, chifres no telhado.
Trazia um rosário de
dentes no pescoço.
Sinhô costuma baixar no
seu terreiro, dando ordens.
-
Ajudem Eunápio!
Escolhia os que deviam
plantar milho, cortar cana, colher feijão.
Tia Cantalina contava que
tinha sentado com tio Lourenço no banco de São Caetano – tóra de
tapinoam onde se casavam os prêtos.
O benzedor amarrava a mão
direita de um na esquerda do outro, engrolava duas palavaras: o
casamento estava feito.
Tio Teodoro, fula de
barbicha, era o carapina.
Falava aos arrancos,
cuspindo a baba do cachimbo.
Com o martelo, a enxó, o
formão fazia jóias de madeira: barcos, trólis, carros de cabrito.
O mais inteligente era
tio Gaudêncio.
Conhecia a história da
fazenda.
Costumava dizer, dos
telhados que desabavam em volta da casa grande:
-
Senzala fechô pr’u módi trezi di maio di prêto.
Mas, quando via os postes
sem fio, que vinham da usina, lembrava a briga dos patrões:
-
Luz apagô pr’u módi trezi di maio di branco.
Falavam do caso de tia
Rosa.
Quando moça, tinha leite,
mas o filho começou a emagrecer.
Só no fim, descobriram.
Uma jararaca entrara na
senzala, mamava enquanto a mãe dormia, pondo a ponta do rabo na boca
da criança.
Todos passavam,
assustados, em frente à sala escuras, de janelas de grade.
Alguns benziam-se.
O tronco estava no chão:
duas chapas dentadas que se juntavam, formando buracos para os pés.
Na parede, desenhos quase
apagados, de bichos, flores e bonecos.
Quem os teria rabiscado,
antes da liberdade: tio Nonato? Tio Pafúncio? Tia Bonifácia?
Tia Marta estava no
paladar da fazenda.
Sabia temperar, como
ninguém, o chouriço, a carne de porco, o arroz de molho pardo.
À hora do almoço aparecia
no pátio, provando a comida dos tachos, enchendo as cuias,
perguntando em voz arrastada:
-
Por quê o Eleutério não tinha vindo?
-
A Anastácia anda sumida.
Se ninguém podia
informar, visitava-lhes o rancho, levando o mantimento, o remédio.
Certa vez, deu para dizer
que tinha o meu tamanho, quando foi vendida em Moçambique e levada
para o tumbeiro.
Seu olhar endurecia, ao
cruzar com o meu, como se estivesse me reprovando.
Comecei a encabular.
Tive a impressão de que
me culpava pelo seu cativeiro.
Perdi o jeito de ir à
cozinha.
Os que iam morrer,
chegavam sem aviso.
Mas a notícia
espalhava-se:
-
Tio Anselmo está na enfermaria.
Começavam as visitas.
Tia Marta mandava-lhes
café com broa.
Na sororóca, acendiam
velas, rezavam.
Faziam uma ladainha
agarrados ao doente.
-
Anselmo vai morrê!
-
Não vai não!
-
Morre, Anselmo!
-
Não morre não!
No outro dia, o entêrro
era de rede.
O cemitério dos escravos
não ficava longe. |