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A PRESENÇA DO NEGRO EM MANGARATIBA, por Emil
de Castro.
Mangaratiba era o caminho natural e obrigatório de entrada dos
negros africanos que eram traficados pelo comendador Joaquim José de
Sousa Breves, o grande senhor de escravo, o maior dos Breves, como o
definiu Agripino Griecco.
Vindos da África, eram transportados nos conhecidos navios
negreiros, como é descrito pelo poeta Castro Alves, de forma poética
e realista, sem deixar de ter os acentos românticos.
Nossas fontes de pesquisa não fazem referência, explicitamente, a
navios negreiros, falam sempre de escuna. Algumas dessas escunas
tinham nomes poéticos como “União Feliz”, “Flor dos Mares”,
“Januária” e “Marambaia”, esta última trazia o nome de uma das
fazendas do comendador, que também era conhecido como o Senhor da
Marambaia.
Os negros eram desembarcados na fazenda Marambaia, onde ficavam de
quarentena para curar-se das mazelas adquiridas durante a longa
viagem, e apagar a profunda tristeza de que eram possuídos, tristeza
nostálgica que muitas vezes levava à morte.
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A senzala onde eles moravam ainda pode ser vista na Marambaia. A sua
estrutura externa continua íntegra e representa um dos únicos marcos
da existência da escravidão no Município de Mangaratiba. No interior
da senzala foi construído um refeitório para os oficiais do Corpo de
Fuzileiros Navais. A fazenda Marambaia é hoje de propriedade da
União, que a cedeu à Marinha.
Os negros, após a quarentena obrigatória na Ilha da Marambaia, eram
levados serra acima para as diversas fazendas do comendador Breves,
seguindo uma trajetória que partia do porto do Saí, nas proximidades
da sede do Município, passava pelo povoado do Saco que se tornou um
celeiro de escravos, tendo prosperado até tornar-se um empório
comercial de relevância.
Neste povoado, o comendador Joaquim José de Sousa Breves tinha
constituído um patrimônio imobiliário respeitável, entre terras,
solares e armazéns de café. Existem vestígios da grandeza da época,
nas ruínas ainda conservadas, chamando atenção as ruínas que dizem
ter sido o teatro onde João Caetano representou por mais de uma vez,
teatro este mandado construir pelo escravocrata. Lafayette Silva, em
“João Caetano e sua época” (subsídios para a história do teatro
brasileiro), publicado na Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, diz que por falta de recursos, João Caetano
empreendeu a pé uma excursão a Mangaratiba e Agra dos Reis e por
intermédio de Artur Angrense Pires, na época, prefeito de
Mangaratiba, que o Cel. Manuel Moreira da Silva informou que ele
esteve aqui entre os anos de 1832 e 1834 e “representou em um
teatrinho existente num sobrado da povoação de enorme opulência e de
grande comércio. Esse teatrinho possuía orquestra própria, então
regida pelo maestro Joaquim Rodrigues. O principal companheiro de
João Caetano, nas suas representações dramáticas, chamava-se Ernesto
Rapallo.
É certo também que o braço escravo foi usado na abertura da estrada
velha da Serra de Mangaratiba, sob as ordens do “rei do café”,
Joaquim José de Sousa Breves, assim como na construção da estrada
Imperial que ligaria Mangaratiba a São João Marcos, hoje Municí-pio
de Rio Claro.
No seio das famílias locais, porém, é muito acentuada a presença do
negro escravo. Nas diversas atividades do cotidiano de uma família,
na pequena lavoura dos sítios, nas tarefas caseiras. Tanto os
escravos do sexo masculino como o do sexo feminino. As negras
trabalhavam na cozinha, na lavagem de roupa nos riachos, na limpeza
da casa, como dama de companhia, mucamas, ama-de-leite ou ocupações
semelhantes.
Há bem pouco tempo, ainda encontravam-se negras idosas ocupadas
nessas atividades, em casas da periferia de Mangaratiba, como nas
fazendas Santa Isabel e Santa Justina, ambas, por sinal, de
propriedade de descendentes dos Breves. Existem ainda neste
Município, morando nessa fazenda, descendentes de Gustavo Victor, um
negro do plantel da fazenda Marambaia que foi entrevistado por Assis
Chateaubriand e alvo de uma reportagem publicada numa edição de “O
Jornal”, comemorativa do bicentenário do café no Brasil. São os
remanescentes da família de Gustavo, moradores da fazenda Santa
Justina, de propriedade de descendentes do ex- prefeito Victor de
Sousa Breves.
Havia uma aproximação muitas vezes afetiva entre alguns escravos e
seus senhores, entre a negrinha e o sinhô. Este relacionamento que
se estabeleceu entre o escravo e o seu dono chegou a tornar-se
amigável, com acentos de parentesco, e até íntimo ou amoroso.
Pesquisando inventários e documentos da Câmara Municipal de
Mangaratiba, verifica-se que era comum o dono de escravos
conceder-lhe alforria através de seu testamento, como ocorreu no
inventário da baronesa do Saí que concedeu a liberdade aos seus
escravos. Algumas vezes chegavam a beneficiá-los com legados, mesmo
após a alforria, como foi o caso do liberto Silvestre Antônio da
Rosa que requereu justificação judicial para provar que era ele o
próprio Silvestre, liberto, filho de Joaquim e Josefina, escravos
que foram do finado Frutuoso José da Rosa, que lhe deixara um legado
de 300 mil réis, como se pode ler nos autos da Sentença Cível, de
1848, lavrada pelo Juiz Municipal Antônio Correa de Carvalho.
Era Silvestre quem carregava a bengala de Frutuoso José da Rosa,
como afirmou uma das testemunhas do processo, que o conhecia desde
1828.
De nação Guiné, nasceu no dia 3l de dezembro de 1919, e recebeu os
santos óleos do batismo na igreja de Nossa Senhora da Guia, como
consta da Certidão de Batismo lavrada no Livro Primeiro de Batismo
de pessoas livres. Foram seus padrinhos Antônio e Cipriano,
escravos. Seu assentamento de batismo foi feito pelo padre Manoel
Álvares Teixeira. O advogado que patrocinou a sua causa foi João
Álvares Rubião, pai do famoso Rubião Júnior, político de renome no
Império, e que é nome de rua em Mangaratiba e praça em Bananal,
município paulista. O avô do célebre contista mineiro Murilo Rubião,
autor de “A Casa do Girassol Vermelho” e “O Pirotécnico Zacarias”,
entre outros livros, nasceu e viveu nesta cidade, antes de ir
residir em Minas Gerais.
O relacionamento entre o negro e seu senhor chegava, muitas vezes,
aos extremos de amor e paixão. Já é sabido que o sinhô mantinha suas
aventuras amorosas (relações ilícitas) com suas escravas. Às vezes
chegavam a escandalizar a sociedade da época com seus romances
pecaminosos.
Em Mangaratiba, tivemos o caso amoroso do padre Antônio Correa de
Carvalho, cavalheiro da Ordem da Rosa, Delegado de Polícia, Juiz
Municipal, Vereador e Presidente da Câmara Municipal, portanto o
primeiro governante da Vila de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba,
que “teve tratos ilícitos com sua escrava Cecília, tendo uma filha
de nome Tomásia e um filho chamado Júlio”, aliás, Júlio Correa de
Carvalho, que se tornou um brilhante advogado. Eles foram
reconhecidos pelo padre “Correa” por Escritura de Perfilhação
lavrada no ano de 1843, no Livro de Notas, ainda existente no
Cartório do 1º Ofício, de Rubem Cabral. Consta da escritura que o
fato se deu “por motivos de fragilidade humana”.
Possuir escravos era sinal de riqueza e poder. O comendador Joaquim
José de Sousa Breves era considerado um grande aristocrata rural
fluminense, não porque tivesse tantas fazendas, mas principalmente
porque tinha cerca de 6.000 escravos. A importância de nossas
famílias era maior pelo número de escravos que possuía, e não pela
propriedade de muitas terras.
Possuíam escravos, nesta cidade, os Passos, os Rubião, os Montebello,
o Barão do Saí, o Barão de Mangaratiba etc.
O tráfico oficial de escravos para o Brasil, como sabemos, teve seu
começo em meados do século XVI. A primeira leva veio com Tomé de
Sousa e os jesuítas, em 1549. Acredita-se que, com a vinda dos
primeiros portugueses para esta região, já alguns escravos foram
trazidos. No entanto, ao que tudo indica, a presença do cativo
importado, como elemento de trabalho e produção, somente ocorreu a
partir de 1700, alcançando uma população significativa até meados de
1800.
O negro era apenas um instrumento de trabalho, uma máquina, uma
coisa, “as mãos e os pés do senhor”. Não merecia qualquer tipo de
educação intelectual e moral; e nem mesmo se cuidava de religião.
Como se falou era reduzido à condição de “coisa”, como os
irracionais, aos quais eram igualados. Como afirma Perdigão
Malheiros, eram até denominados, mesmo oficialmente, “peças”,
“fôlegos vivos”, que se mandava marcar com ferro quente ou por
castigo, ou ainda por sinal como o gado. É o que consta de uma
Provisão de 3 de abril de 1720, conforme Alvará de 3 de março de
174l.
O escravo não merecia consideração alguma da sociedade, perdendo até
a consciência da dignidade humana. Por isso é que o escravo começou
a criar um ódio imenso do senhor e mais ainda do feitor, tanto se
tornavam cruéis. Daí a revolta do negro contra seu dono. Isto deu
origem às constantes fugas de negros que se escondiam nos morros,
onde passavam a morar, e chegavam a constituir os quilombos.
A Câmara Municipal de Mangaratiba refere-se à existência de um
caminho chamado “caminho do Conguinho”. Este caminho partia do
local “Cruz das Almas”, no alto da Vila de Mangaratiba, e alcançava
o povoado do Saco. A Câmara mandou interditá-lo, bloqueando-o com
pedras, para impedir que ele fosse usado pelos traficantes de
negros. Dizia a Câmara:
“Inúmeros desgraçados africanos eram vítimas da mais danada e feroz
ambição daqueles que atropelando as leis da natureza e da sociedade
traficam a carne humana. E em conseqüência desse escândalo e para
evitá-lo resolveu inutilizar inteiramente esse caminho, tendo em
vista tirar aos perversos traficantes uma vereda que só a eles
servia para conseguir a saída das praias para o Saco, empório de um
tão infame comércio, esses infelizes que daí eram distribuídos em
porções para diversos lugares da Serra acima, onde jazem
sacrificados a um perpétuo cativeiro que envergonha a Nação
Brasileira”.
E dizia mais o ofício da Câmara:
“Note-se que só o Saco, esse grande empório do comércio da carne
humana, esse lugar de agitações contra as autoridades legais da
Vila, e de maquinações contra o progresso e aumento dela, é que
atenderam ao pregão de vinte e dois assinantes a reclamar a
conservação de tal estrada, que, a não ser para o exposto fim de dar
por ela entrada tão infame comércio, de nada mais serve”.
E continua:
“Os habitantes do Conguinho, esses que vivem próximos da Vila, estão
contentes com o seu caminho que os conduz a ela e nada disseram”.
O Conguinho nada mais era do que uma réplica do Congo, de onde os
negros vieram. Acredita-se que no Conguinho existisse um pequeno
quilombo que abrigava os negros fugidos, pois que há também
informações nos anais da Câmara, de que os negros se escondiam
nesse caminho e atacavam os passantes, cometendo violências sexuais.
Esse tráfico hediondo a que se refere a Câmara era atribuído ao
Comendador Joaquim José de Sousa Breves. Este fato é comprovado na
leitura de um ofício de 17 de abril de 1837, mediante o qual a
Câmara pediu providências ao Presidente da Província do Rio de
Janeiro, Paulino José Soares de Sousa, a fim de manter a
tranquilidade pública do Município que se achava ameaçada, uma vez
que era iminente um atentado à Fortaleza de N. S. da Guia, então
conhecida como Forte da Guia.
O fato é que o Juiz de Paz prendera uma embarcação que se dizia de
portugueses, denominada “União Feliz”, que vinha se empregando desde
1835 no “ilícito, imoral e desumano tráfico da Escravatura. Ele
acabara de verificar um desembarque de africanos e apreendeu a
embarcação. Com ingerência nessa embarcação, Joaquim José de Sousa
Breves, como não podia comprar o Juiz de Paz em exercício, pretendia
com o uso da força apoderar-se do patacho e do velame, que, por
cautela, estavam depositados no Forte da Guia, para fazê-lo de novo
navegar, a fim de transportar talvez outro carregamento de escravos.
E para isso, mandou engajar na serra acima gente mercenária da mais
ínfima classe, que, armados de diversos modos, descera efetivamente,
e. em sua casa, e de seus protegidos, se acoitaram”. Eram cerca de
100, informa-nos a Câmara, e que “por espírito de rivalidade e mesmo
por vingança, Joaquim José de Sousa Breves ameaçava uma povoação
inteira. Espalhou o terror entre os habitantes do Município, e o que
mais é, disso se vangloriava, e impune e audaz passeia entre nós”.
Havia pouca disciplina na Guarda Nacional, e não existia armamento
em estado de uso, o que realmente contribuía para preocupar ainda
mais “os probos cidadãos da Vila”. Concluía o ofício da Câmara
Municipal da Vila de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba.
Mera suspeita, porém. Nada ocorreu de fato. Os homens, afinal,
teriam vindo trabalhar na recuperação da estrada velha da Serra,
então contratada ao próprio comendador Joaquim José de Sousa Breves.
Os maus tratos e torturas a que eram submetidos os negros deram
origem a um mo-vimento de rebeldia lendário. É o que nos conta Artur
Pires, que foi Prefeito em Mangaratiba e um conhecido filatelista da
tradicional revista “Vida Doméstica”, o que era aliado a suas
pesquisas sobre a história de nossa terra. O acontecimento teria
ocorrido na Fazenda do Saí.
Vamos à narrativa: O Senhor de Escravos tinha sido levado pela “Flor
dos Mares”, uma canoa de 18 pipas, até ao Abraão, na Ilha Grande,
aonde iria, no vapor “Marambaia”, de volta com sua família para o
Rio de Janeiro. O feitor, o novo feitor, pois o antigo tinha
morrido, chamado Manuel, era um homem de mau gênio e de índole
perversa. Por qualquer motivo e até mesmo sem motivo algum, os
escravos sofriam os mais cruentos castigos. Muitos morreram no
tronco, aos golpes de bacalhau.
Pai João era o mais velho dos 38 escravos da fazenda e agüentara as
piores torturas físicas. Dois de seus filhos tinham morrido no
tronco. Agora, seu Manuel não tirava o olho de sua filha, e já lhe
dissera que “assim que o Sinhô viajasse, ela iria morar com ele”.
Aí, com a revolta que estava estalando nas senzalas, Pai João
resolveu que o feitor não poderia viver mais. Ficaram esperando a
volta do feitor, na praia, a fim de executá-lo pelos seus crimes e
maldades. Mandou que todo mundo se vestisse com roupa de festa e
fosse para praia. Quando o feitor saltou da “Flor dos Mares”, com o
chicote em punho, os negros o agarraram e o sentaram numa pedra
lisa, como num banco de réus em cujo redor formou toda a escravaria.
O Pai João lhe falou: “-Seu Manuel, você vai morrer! Você matou
muitos dos nossos, sempre sem motivo de importância. Você violou
nossas mulheres e roubou nossos haveres. Agora você pensava em
furtar Maria, minha neta querida. Mas a sua hora chegou!” Todos
concordaram com gritos e aplausos. Ataram-lhe uma corda no pescoço e
na extremidade dela uma grande pedra. Embarcaram-no na canoa,
levaram-no até longe e jogaram-no ao mar, sem dó nem piedade.
Depois, Pai João reuniu, de novo, toda a sua gente. Subiram para o
alto do penhasco, a que chamavam Pedra do Banquete, hoje conhecida
como Pedra da Conquista, embriagaram-se, dançaram e bateram batuque
até de madrugada. De-pois, Pai João apanhou um cipó fino e
resistente, amarrou os pulsos e braços a braços, homens, mulheres e
crianças. E à frente de todos, Pai João se encaminhou para o abismo
num protesto mudo e viril”. Conclui Artur Pires, afirmando que
depois disto “sopra no Saí o vento furioso revolvendo suas areias e
terras, formando dunas – que são túmulos sem mortos, destruindo tudo
como um lugar de maldição e assobiando uma cantiga triste e dolente
e que é bem uma oração pela alma dos sacrificados”.
Seria uma lenda? Teria ela sido inventada pela imaginação fértil do
historiador que ele era?
Alguma coisa talvez fosse lendária, realmente alguns floreios de
linguagem perten-cem ao poeta. A história, porém, deve ter sido
verdadeira, pois é conhecida a fama dos feitores por suas maldades.
A ESTRADA IMPERIAL S.J.M.
Emil de Castro
A ESTRADA IMPERIAL S.J.M.
É onde a viagem grande começa.
Há o marco de légua que separa o tempo
da passagem da carruagem única e real
e o bebedouro dos cavalos sedentos.
O começo da partida e o final
da chegada ao incerto destino,
outro mundo a se deslembrar de vidas.
Eis a estrada com sua história impossível
de um barão que de amor morreu
por uma escrava que rainha foi
depois de morta.
Como de Castro a Inês
que rainha foi depois de morta.
Mas esta,
escrava e negra,
fez arder de amor
um certo barão
de café.
Aqui jaz: a pedra revela
o amor cativo e o brasão
num coração gravados;
o nome e a cor de uma paixão
tão grande e louca
que ainda sua alma vela
acesa nas noites de quem passa
como de quem passava outrora
na estrada sem fim –
diz a história.
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