Na Sociedade
de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro. Uma sessão memorável. 12
abr. 1911.
Sobre a
epidemia de S. João Marcos falam: o dr. José Maria Coelho, atacando
a Light, e o dr. Floriano de Lemos, que leu um relatorio do dr.
Oswaldo Cruz, mostrando que não foi devido á açudagem do rio das
Lages que se deu a implantação da malaria em Pirahy e S. João
Marcos.
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Oswaldo Cruz e a invasão das águas
em São João Marcos |
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Teve em
seguida a palavra o dr. José Maria Coelho, que fez uma conferencia
sobre a questão do impaludismo no municipio de São João Marcos, de
que tratou, no mez passado, por esta folha, o nosso companheiro dr.
Floriano de Lemos. O dr. José Maria pretendia, mesmo, responder
apenas ao artigo publicado no Correio da Manhã. E foi o que fez,
occupando a tribuna por espaço de trinta minutos, expendendo
francamente sua opinião, que, como elle proprio confessou, era a de
alguns collegas seus. "No correr desta conferencia - disse o orador
e, que o meu trabalho pouco mais foi que reunir os documentos em que
baseei para o estudo da questão..." etc. Esses documentos, na maior
parte, são pareceres de medicos do interior, como os drs. José
Ricardo, Baptista Pereira , Ribeiro de Almeida, Ferreira de
Figueiredo, Moraes Mello, etc. S. s. referiu-se ainda ao relatorio
do actual director de Saude Publica, analysando varios pontos.
Foi uma
dissertação eloquente. O dr. José Maria Coelho é um apaixonado pelas
coisas do seu torrão natal. E’ elle mesmo quem o confessa, dizendo
ao presidente:
"V. ex. e
os meus collegas me desculparão si eu algumas vezes me tiver
afastado do terreno exclusivamente scientifico. Eu tenho muito amor
ás coisas do meu Estado, e sempre que se agita essa questão da
epidemia de S. João Marcos, que deu logar a algumas paginas bem
tristes da nossa historia, eu não posso reprimir a justa revolta que
me invade a alma de fluminense extremado."
Ao terminar
a conferencia, teve a palavra o dr. Floriano de Lemos. Disse que
falaria apenas durante cinco minutos. O que tinha a desenvolver, já
o fizera pelo Correio da Manhã. Respondendo ao dr. Maria Coelho,
pondéra o seguinte:
"O dr.
Coelho acha, baseado no que viu, e na opinião de alguns collegas
(José Ricardo, Baptista Pereira, etc.), que as obras da Light foram
o factor exclusivo da implantação do impaludismo em S. João Marcos e
arredores.
Eu acho,
egualmente baseado no que vi, e tambem com a opinião de varios
collegas e mestres (professores Nuno de Andrade, Dias de Barros,
etc.), que as obras da Light não podem ser consideradas responsaveis,
de modo algum, pela implantação do mesmo impaludismo naquelles
logares. São duas opiniões, que podem correr parallelas; o collega
acate a minha e eu acatarei a sua.
Agora, para
dizer alguma coisa de novo, peço licença para trazer aqui a opinião
do dr. Oswaldo Cruz, cuja competencia scientifica e capacidade moral
não devem, não podem, não soffrem a menor discussão."
A este
ponto o dr. Maria Coelho apartêa o dr. Floriano:
- O collega
não é capaz de ler aqui o relatorio do dr. Oswaldo Cruz. Ainda não
está publicado.
Como
resposta, o nosso companheiro passou a exhibir esse relatorio,
competentemente authenticado e com firma reconhecida, o qual abaixo
publicamos na integra.
Salientemos, porém:
O dr.
Oswaldo Cruz concorda in totum com a opinião expendida no Correio da
Manhã por Floriano de Lemos: o grande brasileiro não só diz "que a
região é typo de região palustre", e que "suas cercanias são ha
muito conhecidas como zonas malarigenas, onde o impaludismo reinou e
reina sob a fórma endemica", mas ainda affirma que "o alagamento dos
açudes citados só poderia ser contribuido para sanear a zona em que
elles se achavam".
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A malária ou paludismo é uma doença
infecciosa aguda ou crônica causada por protozoários parasitas
do gênero Plasmodium, transmitidos pela picada do mosquito do
gênero Anopheles. |
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RESPOSTA aos Quesitos. Gazeta do Notícias, Rio de Janeiro, 12 abr.
1911.
1o
- Os paúes, pantanos e charcos existentes nas immediações da repreza
em questão, mas em terrenos de terceiros, independentes desta, não
bastam para explicar a permanencia do impaludismo nos municipios de
Pirahy e São João Marcos, anteriormente ao estabelecimento da
referida repreza?
Resposta -
Sim. A região póde ser considerada como typo de região palustre.
2o
- O simples alagamento das margens da repreza poderia engendrar os
miasmas incriminados de determinar a apparição do impaludismo nos
referidos municipios?
Resposta -
A repreza, por si, não constitue habitat predilecto para o
desenvolvimento das anophelinas, que são os unicos transmissores
provados do impaludismo. Esses mosquitos preferem para a phase
aquatica de sua evolução aguas pouco profundas e onde se desenvolve
vegetação de plantas verdes. Taes condições, na repreza, não são
encontradas sinão em certas cabeceiras situadas nas extremidades
distantes dos fundos dos sacos dos valles alagados, mórmemente nas
épocas em que, como agora, o nivel das aguas desce, abandonando nas
depressões do terreno depositos que poderão constituir viveiros
propicios aos mosquitos transmissores da malaria,
O
impaludismo não é engendrado por miasmas, na accepção antiga do
vocabulo. Em materia de impaludismo, miasma, hoje significa
anophelina infectada pelo parasita malarigeno. Assim, o alagamento
de certos pontos afastados da repreza poderia ter favorecido a
proliferação de anophelinas. Essas, porém, só por si não produziriam
impaludismo si na região não existissem impaludados onde ellas se
infectasse, transmittindo o mal, depois, a outras pessoas.
3o
- Quaes são os agentes habituaes da transmissão do impaludismo, em
todas suas fórmas clinicas?
Resposta -
São os culicidas da sub-familia das anophelinas. Entre nós são
transmissoras provadas da malaria as seguintes especies: cellia
argyrotarsis, cellia albimana, assibalzagaia, pseudo-maculipes,
cyclolepteron intermedium e cyclolepteron medio-punctatum. São
consideradas transmissoras provaveis as seguintes especies: cellia
brasiliensis, myzorhinchella lutzi, myzorhinchella parva, myzomyia
lutzi e arribalzagaia maculipes.
4o
- No caso de serem, conforme se tem affirmado, os mosquitos os
agentes conhecidos da propagação do impaludismo, seria o alagamento
da zona da repreza que os fizesse ahi apparecer?
Resposta -
O alagamento dos fundos de sacco da repreza nas condições
assignaladas na resposta ao quesito n. 2, poderia contribuir para a
formação de mais alguns viveiros de anophelinos já existentes na
zona, mas não para fazer apparecer nella mosquitos dessa sub-familia,
si ahi já não existissem anteriormente. Resta, porém, provar si os
novos viveiros são em maior numero do que os paúes, pantanos e
açudes, que desappareceram pelo alagamento da região e si o numero
de anophelinas na área é hoje maior ou menor do que anteriormente.
5o
- No caso de existirem anteriormente ahi, haverá probabilidade de se
haverem tornado esses mosquitos mais virulentos após o
estabelecimento da repreza, conforme a opinião de alguns moradores
da zona infectada?
Reposta - A
existencia anterior de pantanos numerosos no perimetro em que se
realizou a repreza e a indiscutivel prevalencia do impaludismo na
zona explicam a possibilidade de, em momento dado, haver maior
numero de mosquitos infectados por occasião da construcção da
represa. Com effeito, o affluxo de numerosa população de operarios,
entre os quaes já se achava grande numero de antigos malaricos da
região - reservatorios de virus malarigeno - achada á grande cópia
de anophelinos que encontravam propícios creadouros nos numerosos
paúes, que se topam a cada passo em todas as circunvizinhanças,
explicam que, em dada occasião, o numero de individuos infectantes
tornasse possivel a infecção da maioria, sinão de todas as
anophelinas da zona e que, assim estavam nas condições de tornar
mais numerosos e mais graves os casos de malaria. Mais numerosos,
porque, na unidade de tempo, poderia ser sugado e infectado maior
numero de individuos e mais graves, porque as picadas successivas do
mesmo individuo por varios mosquitos infectados poderiam lhes
conferir infecções mais intensas. Assim durante as obras de
estabelecimento da repreza o numero de mosquitos infectados podia se
ter tornado maior. Actualmente porém, as condições sanitarias podem
ser consideradas identicas ás que anteriormente existiam: grande
numero de trabalhadores diminuiu, numerosos viveiros de anophelinos
desappareceram com o alagamento da repreza são facilmente
eliminaveis.
6o
- Ha noticias de epidemias anteriores de impaludismo nessa zona, ou
em zonas analogas, vizinhas ou contiguas?
Resposta -
A região em que foi feita a repreza e suas cercanias são, de ha
muito consideradas e conhecidas como zonas malarigenas, onde o
impaludismo reinou e reina sob a fórma endemica. E continuará a
assolar, si nas regiões limitrophes, inteiramente abandonadas, não
forem tomadas as medidas de prophylaxia indispensaveis.
7o
- O facto de ter a repreza alagado os antigos açudes de D. Theophila
Prado de Mathias Ramos, de D. Gabriel, de Garcia e tantos outros, os
quaes se acham actualmente com 5, 8 e 10 metros de agua acima do
nivel antigo, póde ter prejudicado as condições de salubridade da
zona?
Resposta -
O alagamento dos açudes citados só poderia ter contribuido para
sanear a zona em que elles se achavam, supprimindo viveiros
indiscutiveis de anophelinas e trasnformando verdadeiros pantanos em
lago de aguas profundas, onde se não criam, em regra, as anophelinas.
Foi salutar medida de saneamento da zona.
8o
- Foi devido á açudagem do rio das Lages que se deu a implantação da
malaria nos municipios de Pirahy e São João Marcos?
Reposta -
De modo seguro se póde affirmar que a repreza do rio das Lages não
foi a causadora da implantação do impaludismo nos municipios
apontados onde causas que ainda prevalecem são sobejas para
explicar, não só a existencia anterior, como a permanencia e
continuidade da infecção, si não forem tomadas as medidas de
bonificação tellurica e humana aconselhadas como elementos de
prophylaxia anti-malarica.
9o
- O facto de terem sido installados hospitaes na cidade de são João
Marcos em uma casa particular e em uma egreja. Sem as necessarias
condições de isolamento andando os doentes pelas ruas, contribuiu ou
não para o desenvolvimento da epidemia?
Resposta -
A agglomeração de impaludados em hospital situado em zona malarigena,
sem que houvesse protecção, dos doentes contra as picadas das
anophelinas, poderia ter augmentado a infecção dos mosquitos da
região e tornar muito maiores as possibilidades de infecção. De
outro lado, poderia o facto incriminado fazer com que as pessoas já
atacadas se reinfectassem, prolongando-se nellas, quasi que de modo
indefinido, a infecção de que eram portadoras. Acresce ainda que nas
circunstancias apontadas favoreciam-se as condições para formação de
raças de hematozoarios resistentes á quinina, o que constitue sério
escolho, não só para o tratamento como para a prophylaxia chimica da
molestia.
10o
- Sendo o municipio de São João Marcos encravado entre os de Pirahy,
Manguaratiiba e Itaguahy, onde sempre reinou a malaria, poderia
nelle apparecer o impaludismo desde que houvesse anopheles e homem
impaludado, e ainda que a Light & Power não houvesse feito quaisquer
obras?
Resposta -
Não é assumpto passivel de discussão o da existencia do impaludismo
no municipio de São João Marcos, antes das obras feitas para
açudagem do ribeirão das Lages. Todas as condições malarigenas ali
existiam e ainda permanecem em zonas extensas que não foram
attingidas pelas obras alludidas.
11o
- Existindo endemicamente a malaria nessa zona, não é perfeitamente
explicavel que de tempos a tempos se desenvolvam epidemias?
Respostas -
Desde que se verificou grande accumulo de pessoal em zona malarigena
que se não tenha sujeitado esse pessoal ás medidas anti-malaricas,
aconselhadas em taes casos, é de regra a erupção de surtos
epidemicos. O numero de mosquitos infectados augmenta, a
disseminação do mal se incrementa e as picadas successivas do mesmo
individuo por grande numero de culicidas infectantes torna mais
grave a infecção humana.
12o
- Quaes os meios e methodos que a prophylaxia aconselha para
debellar-se epidemia de malaria e com seguro exito? Ha exemplos de
saneamento de zonas analogamente infestados no nosso paiz pelo
impaludismo?
Resposta -
Não cabe aqui dizer sinão das medidas de prophylaxia applicaveis ao
caso concreto, referindo-se á zona estudada.
Taes
medidas só serão efficazes quando estendidas simultaneamente á toda
região infectada. Sem acção synergica o resultado será nullo. São
ellas:
I) -
Drenagem superficial de todos os terrenos alagadiços. Essa medida
que já foi posta em pratica em muitos terrenos da companhia, precisa
ser levada a effeito, agora, nos fundos de sacco das cabeceiras do
açude, devendo ahi ser feitas, entre braços e o lago, barragens com
saida inferior da agua, de modo a permittir a petrolagem da pequenas
porções de agua, a montante dessas represas. Melhor seria ainda que
o nivel da agua fosse mantido sempre o mesmo pela adducção de maior
volume de agua, evitando-se, assim, o accumulo de aguas estagnadas,
quando o nivel do lago baixar:
2) -
Tratamento medicamentoso intensivo de todos os malaricos da região,
afim de supprimir os depositos de virus em que se venham infectar as
anophelinas;
3) -
Protecção mecanica, por meio de telas metalicas de I I/2 mm. de
malha, de todas as habitações, devendo a portas de acesso ao
interior dessas habitações ser dotadas de tambores com portas duplas
providas de fortes molas;
4) -
Prophylaxia quinica por methodo que só poderá ser determinado após
ensaio da resistencia á qq. do hematozoario da região, para todas as
pessoas que se tiverem de expôr ás eventualidades da infecção,
trabalhando a horas do nyctêmero preferidas pelas anophelinas da
zona para fazerem suas refeições hematicas.
5) -
Eventualmente, expurgos dos domicilios que venham a ser reconhecidos
como fócos seguros de malaria.
Todas as
zonas malaricas deverão ter, além disso, todas as colleções aquosas
como a de represa do rio das Lages, abundantemente provadas de
peixes que devorem, por predilecção, as larvas de mosquitos.
Entre nós,
como saneamento definitivo de regiões malaricas, podemos apontar as
zonas peri-urbanas da cidade do Rio de Janeiro que foram saneadas,
por occasião da campanha anti-amarillica, aqui levada a effeito.
Rio de
Janeiro, 14 de fevereiro de 19II. - Dr. Oswaldo Gonçalves Cruz."
(Firma reconhecida pelo Tabellião Gomes Guimarães).
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